Quando conheceu o sorvete de açaí amazônico no início da década de 70 no Ceará, durante uma competição de esportes universitários, o mundialmente conhecido climatologista Carlos Nobre não vislumbrava ainda que a fruta seria um dos alvos de um projeto tão grandioso por ele liderado: a Terceira Via/Amazônia 4.0. O conceito foi apresentado em um evento da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, no Panamá, e foca na sustentabilidade, mudando o paradigma de desenvolvimento da região Amazônica. Para a comunidade acadêmica da Unicamp, foi apresentado durante as comemorações dos 40 anos do Instituto de Geociências, na palestra “Os riscos para a Amazônia das mudanças climáticas e dos usos da terra – Amazônia 4.0: um novo paradigma de desenvolvimento sustentável”.
Com o auditório do IG lotado, o climatologista, que vem estudando a Amazônia há 40 anos, abordou o bioma sob quatro perspectivas: como uma entidade regional do Sistema Terrestre no Antropoceno; os riscos à floresta causados pelas mudanças climáticas e pelo uso da terra; a possibilidade de interrupção de desmatamento; e a Terceira Via ou, como definiu, Amazônia 4.0, em que apresentou um novo paradigma de desenvolvimento sustentável para aquela região. Em entrevista ao Portal da Unicamp, Carlos Nobre detalhou o conceito de Amazônia 4.0.
Segundo o cientista, o modelo agropecuário do Brasil é, desde o século XVI, um modelo desenvolvido em outras partes do mundo que implica na substituição dos biomas naturais. “O que deixou de se ver é que existe um enorme potencial inexplorado da biodiversidade, principalmente das florestas tropicais. Temos alguns exemplos, poucos exemplos, mas poderosos. Um deles é o açaí, que assim como outros da biodiversidade amazônica utilizados regionalmente, explodiu mundialmente”, apontou. De acordo com Nobre, o valor total do açaí só perde para a carne na Amazônia e deverá ultrapassá-la em um futuro não muito distante. “O açaí em sistema extrativista, ou seja, no meio da floresta, pode ter uma rentabilidade média de 4 vezes a da carne. Em um sistema agroflorestal, pode ser até 10 vezes mais rentábil”, diz. Outro ponto positivo do açaí em relação à carne, é que o primeiro beneficia um número muito maior de pessoas, distribuindo melhor a renda. Nobre aponta que as grandes fazendas agropecuárias concentram muito a renda com os proprietários, além de beneficiar poucos empregados, que são no máximo da classe D. “Há muitas famílias desse sistema agroflorestal que começa a migrar da classe D para a classe C. Essa economia da biodiversidade se mostra poderosa, mas ainda assim a agregação de valor desses produtos não é feito na Amazônia”, revela.
Carlos Nobre afirma que há mais de 50 produtos derivados do açaí, mas que não foram desenvolvidos na Amazônia. O bioma produz inúmeros produtos primários, como açaí, castanha e cacau, que passam no máximo por um pré-processamento naquela região. “A maior parte dos produtos derivados do açaí foram desenvolvidos nos Estados Unidos. A indústria de transformação é praticamente inexistente na Amazônia, mas o potencial dos produtos da biodiversidade é gigantesco. Não casamos esse potencial do aproveitamento da biodiversidade com a indústria”, diz. De acordo com o conceito lançado por Nobre, o açaí, que é um alimento base das populações interioranas da Amazônia, pode provocar o desenvolvimento sustentável daquela região, criando milhares de empregos e, ao mesmo tempo, promovendo a conservação do meio ambiente.
Segundo Nobre, “pela primeira vez na história recente, a tecnologia deixou de ser um entrave. Aparece a oportunidade de desenvolver indústria na Amazônia em várias escalas, desde a local, em pequenas comunidades, até cidades, para agregar valor”. Nobre lembra que, em geral, países desenvolvidos são industrializados porque é na agregação de valor que ocorre o aumento da renda e da qualidade de vida. No caso da indústria do açaí, que tem nos Estados Unidos seu maior importador e transformador, há geração de mais de 15 bilhões de dólares no mundo, sendo que desse total, apenas 10% volta para a Amazônia. A Amazônia 4.0 pretende, portanto, trazer essas tecnologias para as cadeias produtivas.
O projeto foi proposto em 2018. Do ponto de vista acadêmico, está ancorado no Instituto de Estudos Avançados da USP e do ponto de vista prático está ancorado na ONG Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), que existe há mais de 25 anos em Belém. “O projeto tem um instrumento de implementação chamado de Laboratórios Criativos da Amazônia em que queremos levar laboratórios supramodernos, mostrando que é possível capacitar as populações daquela região, que têm total capacidade de aprender. A ideia é levar essas modernas tecnologias para o coração da floresta”, destaca. Alguns desses laboratórios são disruptivos, como o de genômica, que irá capacitar pessoas para sequenciar geneticamente plantas e animais, com registros em blockchain, resguardando assim a propriedade intelectual.
Terceira Via
Em 2016, o climatologista liderou um grupo de pessoas em um artigo científico em que relataram os riscos da floresta. Questionaram-se sobre o que fazer. E veio então a ideia da Terceira Via. Segundo Nobre, a Primeira Via é a da conservação – a Amazônia tem 47% de áreas protegidas. “Essa política foi muito efetiva, mas essas áreas têm sido muito ameaçadas pelas mudanças climáticas e pelo avanço da agropecuária”, disse. Já a Segunda Via é o modelo adotado na década de 70 durante o governo militar de um desenvolvimento baseado na exploração intensiva de recursos naturais – agropecuária, mineração e energia. “Mineração e infraestrutura respondem por 10% de desmatamento. Quase 90% é agropecuária e a expansão da fronteira agrícola. Esse modelo de ocupação geopolítca representava um enorme receio de que a Amazônia fosse objeto de cobiça internacional, principalmente dos Estados Unidos. Eles não enxergavam os povos indígenas e os amazônicos como garantidores da soberania brasileira. A floresta era vista como inimiga. Esse é o modelo que vigora até hoje – o de utilização intensiva de recursos minerais e substituição da floresta por gado e soja”, informa.
Os dois modelos estão em permanente choque. ONGs ambientalistas tentavam disciplinar o agronegócio sustentável, mas o ruralismo brasileiro defende a posse da terra e a expansão da fronteira agrícola, enxergando a substituição da floresta como única maneira de haver desenvolvimento. “Isso não é econômico. É cultural e político, que não enxerga valor na floresta e em sua biodiversidade, que é muito forte”, destaca Nobre. A Terceira Via surge então como “uma bioeconomia de floresta em pé, com sistemas florestais, numa escala reduzida e com exploração sustentável através de ferramentas do século 21, da 4ª Revolução Industrial”, conforme aponta Nobre.
Para o renomado cientista, o maior valor futuro da Amazônia não é o material, mas o entendimento dos ativos biológicos, ou seja, o conhecimento. “No século 21, entender como centenas de milhares de espécies evoluíram na Amazônia, quais as interações entre as espécies, trazendo esse conhecimento para benefício humano: esse é o maior valor. Manter a floresta em pé, ter ciência e tecnologia e capacitar as populações para participarem desse novo ciclo econômico: esse é o nosso projeto na Terceira Via Amazônica”, destaca. Nobre lembra ainda que a fase de transformação material, como no caso do açaí, “pode beneficiar muito mais economicamente o bem-estar social das populações da Amazônia”, finaliza.
O especialista irá apresentar o conceito no Sínodo do Vaticano sobre a Amazônia, que ocorrerá a partir de 6 de outubro.